07 março 2008

O Homem que inventou os sumários no 1.º Ciclo (Lemos, Valter) visto por FILOMENA MÓNICA

Não, sr. secretário de Estado.


Maria Filomena Mónica - Público, 2007-09-30

Valter Lemos nunca participou em debates parlamentares, nunca
demonstrou possuir uma ideia sobre Educação. A ministra da Educação,
Maria de Lurdes Rodrigues, tem aparecido na televisão e até no
Parlamento, o mesmo não sucedendo ao seu secretário de Estado, Valter
Lemos. É pena, porque este senhor detém competências que lhe conferem
um enorme poder sobre o ensino básico e secundário. Intrigada com a
personagem, decidi proceder a uma investigação. Eis os resultados a
que cheguei.
Natural de Penamacor, Valter Lemos tem 51 anos, é casado e possui uma
licenciatura em Biologia: até aqui nada a apontar. Os problemas surgem
com o curriculum vitae subsequente. Suponho que ao abrigo do acordo
que levou vários portugueses a especializarem-se em Ciências da
Educação nos EUA, obteve o grau de mestre em Educação pela Boston
University. A instituição não tem o prestígio da vizinha Harvard, mas
adiante. O facto é ter Valter Lemos regressado com um diploma na
"ciência" que, por esse mundo fora, tem liquidado as escolas. Foi
professor do ensino secundário até se aperceber não ser a sala de aula
o seu habitat natural, pelo que passou a formador de formadores,
consultor de "projectos e missões do Ministério da Educação" e, entre
1985 e 1990, a professor adjunto da Escola Superior do Instituto
Politécnico de Castelo Branco.
Em meados da década de 1990, a sua carreira disparou: hoje, ostenta o
pomposo título de professor-coordenador, o que, não sendo doutorado,
faz pensar que a elevação académica foi política ou
administrativamente motivada; depois de eleito presidente do conselho
científico da escola onde leccionava, em 1996 seria nomeado seu
presidente, cargo que exerceu até 2005, data em que entrou para o
Governo. Estava eu sossegadamente a ler o Despacho ministerial nº 11
529/2005, no Diário da República, quando notei uma curiosidade. Ao
delegar poderes em Valter Lemos, o texto legal trata-o por "doutor",
título que só pode ser atribuído a quem concluiu um doutoramento,
coisa que não aparece mencionada no seu curriculum. Estranhei, como
estranhei que a presidência de um politécnico pudesse ser ocupada por
um não doutorado, mas não reputo estes factos importantes. Aquando da
polémica sobre o título de engenheiro atribuído a José Sócrates,
defendi que os títulos académicos nada diziam sobre a competência
política: o que importa é saber se mentiram ou não.
Deixemos isto de lado, a fim de analisar a carreira política do sr.
secretário de Estado. Em 2002 e 2005, foi eleito deputado à Assembleia
da República, como independente, nas listas do Partido Socialista.
Nunca lá pôs os pés, uma vez que a função de direcção de um
politécnico é incompatível com a de representante da nação. A sua vida
política limita-se, por conseguinte, à presidência de uma assembleia
municipal (a de Castelo Branco) e à passagem, ao que parece
tumultuosa, pela Câmara de Penamacor, onde terá sofrido o vexame de
quase ter perdido o mandato de vereador por excesso de faltas
injustificadas, o que só não aconteceu por o assunto ter sido
resolvido pela promulgação de uma nova lei. Em resumo, Valter Lemos
nunca participou em debates parlamentares, nunca demonstrou possuir
uma ideia sobre Educação, nunca fez um discurso digno de nota.
Chegada aqui, deparei-me com um problema: como saber o que pensa do
mundo este senhor? Depois de buscas por caves e esconsos, descobri um
livro seu, O Critério do Sucesso: Técnicas de Avaliação da
Aprendizagem. Publicado em 1986, teve seis edições, o que pressupõe
ter sido o mesmo aconselhado como leitura em vários cursos de Ciências
da Educação. Logo na primeira página, notei que S. Excia era um
lírico. Eis a epígrafe escolhida: "Quem mais conhece melhor ama."
Afirmava seguidamente que, após a sua experiência como formador de
professores, descobrira que estes não davam a devida importância ao
rigor na "medição" da aprendizagem. Daí que tivesse decidido
determinar a forma correcta como o docente deveria julgar os
estudantes. Qualquer regra de bom senso é abandonada, a fim de dar
lugar a normas pseudocientíficas, expressas num quadrado encimado por
termos como " skill cognitivos". Navegando na maré pedagógica que tem
avassalado as escolas, apresenta depois várias "grelhas de análise".
Entre outras coisas, o docente teria de analisar se o aluno
"interrompe o professor", se "não cumpre as tarefas em grupo" e se
"ajuda os colegas".
Apenas para dar um gostinho da sua linguagem, eis o que diz no
subcapítulo "Diferencialidade": "Após a aplicação do teste e da sua
correcção deverá, sempre que possível, ser realizado um trabalho que
designamos por análise de itens e que consiste em determinar o índice
de discriminação, [sic para a vírgula] e o grau de dificuldade, bem
como a análise dos erros e omissões dos alunos. Trata-se portanto,
[sic de novo] de determinar as características de diferencialidade do
teste." Na página seguinte, dá-nos a fórmula para o cálculo do tal
"índice de dificuldade e o de discriminação de cada item". É ela a
seguinte: Df= (M+ P)/N
em que Df significa grau de dificuldade, N o número total de alunos de
ambos os grupos, M o número de alunos do grupo melhor que responderam
erradamente e P o número de alunos do grupo pior que responderam
erradamente.
O mais interessante vem no final, quando o actual secretário de Estado
lamenta a existência de professores que criticam os programas como
sendo grandes demais ou desadequados ao nível etário dos alunos. Na
sua opinião, "tais afirmações escondem muitas vezes, [sic mais uma
vez] verdades aparentemente óbvias e outras vezes "desculpas de mau
pagador", sendo difícil apoiá-las ou contradizê-las por não existir
avaliação de programas em Portugal". Para ele, a experiência dos
milhares de professores que, por esse país fora, têm de aplicar, com
esforço sobre-humano, os programas que o ministério inventa não tem
importância.
Não contente com a desvalorização do trabalho dos docentes, S. Excia
decide bater-lhes: "Em certas escolas, após o fim das actividades
lectivas, ouvem-se, por vezes, os professores dizer que lhes foi
marcado serviço de estatística. Isto é dito com ar de quem tem, contra
a sua vontade, de ir desempenhar mais uma tarefa burocrática que nada
lhe diz. Ora, tal trabalho, [sic de novo] não deve ser de modo nenhum
somente um trabalho de estatística, mas sim um verdadeiro trabalho de
investigação, usando a avaliação institucional e programática do ano
findo." O sábio pedagógico-burocrático dixit.
O que sobressai deste arrazoado é a convicção de que os professores
deveriam ser meros autómatos destinados a aplicar regras. Com
responsáveis destes à frente do Ministério da Educação, não admira
que, em Portugal, a taxa de insucesso escolar seja a mais elevada da
Europa. Valter Lemos reúne o pior de três mundos: o universo dos
pedagogos que, provindo das chamadas "ciências exactas", não têm uma
ideia do que sejam as humanidades, o mundo totalitário criado pelas
Ciências da Educação e a nomenklatura tecnocrática que rodeia o
primeiro-ministro.



Historiadora

Sem comentários: