Crónica de um Natal impossível
Por Pedro Barroso
HOJE NÃO ME APETECE Natal.
Não acredito na bondade por decreto.
Não me deslumbro com as luzes e os sinos tocando aleluias de alegria.
Acho tudo isso uma treta de consumo. E, num país sem dinheiro, nem o consumo pode circular no excesso destemperado da saison.
Porque não havendo um, não pode existir o outro.
E o povo, sem poder de compra, assiste ao sonho compensatório e impraticável de quebrar fronteiras em Schengens distantes.
E compra castanhas assadas em discutido embrulhamento, nas tais controversas folhas da lista amarela, como tradição.
É pouca e controlada felicidade. Farinhenta vida, a do adorador de sonhos.
Fraca alegria para a capital da Europa, ao que parece, supostamente passando por aqui. Tratados de Lisboa. Êxitos imensos. Glória in excelsis.
Pois. É pena. Porque só não temos é dinheiro para cantar.
Este é, seguramente, dos Natais mais pobres de sempre dos últimos anos para o Povo português. Com salários a diminuírem, pensões insignificantes, ajuda nos medicamentos a baixar, prestações das casas a subir desenfreadamente todos os meses, desemprego alarmante.
E contudo estamos de parabéns. Brilhantes acordos Europeus. Bravo.
Podemos circular de Tallin a Lisboa, sem parar em nenhuma fronteira. Schengen alargou. Quase deixou de ser necessário o velho passaporte. Meu querido companheiro de viagem, meu cúmplice de fugas e secretos desvios de percurso, meu medidor de mim, numa juventude que foi – a medo, mas foi – viajante e transgressiva.
Hoje podemos celebrar Natais – para quem neles acredite – com Pais do dito cujo vindos directamente da Noruega sem passaporte. Renas incluídas, se estiverem vacinadas, supõe-se. ASAE oblige. Um escândalo.
Não me vejo aqui. Amigos, acreditem: - não sei onde pertenço.
O facto é que, contudo, também não me vejo em mais parte alguma. Com efeito, a praia tropical, sinceramente - que alguns amigos praticam como fuga compulsiva a uma época de convívio familiar por obrigação - também não me seduz por aí além.
Dezembro é bonito com neve e frio. Com lareira e aconchego. Sou europeu daqui, deste lado do tempo e do mar. Desta gente marinheira e montanheira. Deste cheiro a sardinha assada no Verão. Dos cavalos lusitanos. Do bacalhau com grão. Da paixão de Florbela e da angústia existencial de Vergilio. O Ferreira, claro, meu querido professor.
Queime-se, pois, a cavaca e o chambaril. Demos as mãos na noite de angústia e saboreemos a nossa pequenez contente. Misturemos leite e farinha e façamos os coscorões da ilusão. Cortemos no açúcar, que está caro. E troquemos de pequenas prendas com um sorriso quase conformado.
E disfarcemos a tristeza.
Eu não devia escrever isto. Porque é suposto estar alegre.
Mas andam-me a roubar, aos poucos, um outro País maior. Onde foi palavra, e gesto, e esperança e teve significado o verbo acreditar.
Como sobreviver, pois, ao Natal de Sócrates, após estes anos de deslize em perda do poder de compra, sob o mais hipócrita sorriso de alegrias marginais de foro europeu, que nos aportam nada?
Que me interessa que me ofereçam viagem sem fronteiras até à Estónia, se o povo tem de contar os tostões para ir visitar a velhota que está lá, no frio, afinal aqui tão perto? Numa lareira acesa, sozinha, algures, numa qualquer casa perdida, lá para a Guarda, Arganil, Bragança, Mértola, Mação, Melgaço?
E quantas vezes é um telefonema meigamente mentiroso que vai ter de disfarçar a mágoa secreta da impotência?
Ah! Meu velho passaporte de partir!... Vou passar a consoada dos outros, ricos e pobres, contigo no meu peito.
Leva-me longe daqui e que eu não volte.
Ou volte sempre, que o meu viajar é eterno em tuas mãos. E eu amo-te tanto como a vida que não tenho, o sonho inacabado do Império adiado e adormecido de coisas superiores que habita em mim.
E dá-me os longes todos que encontrares, que eu vou gostar.
E não preciso de aviões, nem renas, nem Schengens abertos para circular no sonho. Nem no Mundo.
Mas noutro. Feito de homens melhores, e duma total e absoluta felicidade.
Que este fede. E assim não há poema.
Quanto mais Natal.
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